“Ide por todo mundo, Proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15)

O Pelicano como Símbolo Eucarístico na Tradição Católica

A simbologia cristã primitiva e medieval é rica em imagens que traduzem verdades espirituais e teológicas. Entre esses símbolos, destaca-se a figura do pelicano, frequentemente representado em cálices, sacrários, vitrais e outros objetos litúrgicos. Esta ave, pouco comum na fauna europeia, tornou-se símbolo do sacrifício redentor de Cristo, especialmente em sua dimensão eucarística.

A origem simbólica do pelicano deriva de uma antiga tradição naturalista, já mencionada por autores como Plínio, o Velho (História Natural, X, 63), e posteriormente reelaborada no contexto cristão. Segundo essa tradição, a mãe pelicano, diante da morte de seus filhotes, fere o próprio peito e os revive com o sangue que dela jorra — num gesto de amor extremo que lhe custa a vida. Essa imagem, embora lendária, foi interpretada teologicamente como uma prefiguração de Cristo, que dá a vida por Seus filhos espirituais.

Os Padres da Igreja adotaram rapidamente essa analogia. Santo Epifânio de Salamina, por exemplo, via no pelicano uma imagem da Ressurreição e do poder vivificante do sangue de Cristo. Santo Jerônimo também mencionou a lenda do pelicano em suas obras, associando-a à entrega amorosa de Cristo na cruz. O símbolo ganhou especial destaque na Idade Média, encontrando seu ápice na teologia de São Tomás de Aquino, que no hino Adoro Te Devote invoca Cristo como “Pie Pelicane, Iesu Domine”.

“Ó Pelicano amoroso, Senhor Jesus, Lava-me, impuro, com Teu Sangue; Uma só gota, derramada por pecadores, Pode purificar o mundo inteiro de toda culpa.”

Essa oração expressa de forma lírica e profunda o conteúdo da fé católica: o sangue de Cristo, derramado na Cruz e atualizado sacramentalmente na Eucaristia, é fonte de perdão, purificação e vida nova. O Catecismo da Igreja Católica ensina:

“Na Eucaristia, o sacrifício de Cristo torna-se também o sacrifício dos membros do seu Corpo. […] O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício” (CIC, n. 1368).

Além disso, o Concílio de Trento reafirma que a Santa Missa é um verdadeiro sacrifício propiciatório, no qual “o mesmo Cristo que se ofereceu uma vez de modo cruente sobre o altar da cruz, é oferecido de modo incruento pelos ministérios dos sacerdotes” (Sessão XXII, cap. 2).

A imagem do pelicano, ao abrir o próprio lado, evoca diretamente o episódio do Evangelho de João (19,34), no qual o lado de Cristo é traspassado, e dele jorram sangue e água — sinais dos sacramentos do Batismo e da Eucaristia, que regeneram e alimentam a Igreja. Santo Agostinho, ao comentar essa passagem, afirma:

“O sangue foi derramado para o perdão dos pecados; a água, para a purificação. […] A Igreja nasceu do lado aberto de Cristo adormecido na cruz, como Eva foi formada do lado de Adão” (In Iohannis Evangelium Tractatus, 120,2).

A simbologia do pelicano, portanto, remete diretamente ao mistério pascal de Cristo, e por isso foi incorporada à iconografia litúrgica com profunda veneração. Nas catedrais góticas, em particular, o pelicano aparece sobre os sacrários ou em elementos do altar, indicando que ali reside Aquele que nos deu o próprio corpo como alimento de vida eterna (cf. Jo 6,51).

A contemplação dessa imagem leva à oração, como rezam os fiéis: “Senhor Jesus, Bom Pelicano, purifica-nos com Teu Sangue. Ressuscita-nos do pecado. Alimenta-nos com o Pão dos Anjos, Teu Corpo e Sangue — o único alimento que dá a vida eterna.”

Assim, o pelicano não é apenas um símbolo devocional, mas uma chave catequética e mística para compreender o dom supremo da Eucaristia. Ele nos remete ao amor redentor de Cristo, que morre para que vivamos, e que permanece entre nós sob as espécies do pão e do vinho, oferecendo-Se como sacrifício perene, memorial da cruz e comunhão real com Deus.

 

Bibliografia Básica para Aprofundamento

  1. São Tomás de Aquino
  • Suma Teológica. Trad. de vários volumes. São Paulo: Loyola.

Ver especialmente III Parte, Questões 73 a 83, que tratam da Eucaristia.

  • Adoro Te Devote (hino). Tradução e comentários teológicos em diversas edições litúrgicas e patrísticas.
  1. Santo Agostinho
  • Tratados sobre o Evangelho de São João (In Iohannis Evangelium Tractatus), especialmente Tratado 120.

Ed. Paulus ou Vozes — Coleção Patrística.

  • A Cidade de Deus.

Ver as reflexões sobre o corpo de Cristo místico e a Igreja nas partes finais.

  1. Catecismo da Igreja Católica (1992)
  • Edição oficial da CNBB, especialmente os parágrafos 1322 a 1419 (sobre a Eucaristia).
  1. Concílio de Trento
  • Decreto sobre o Sacrifício da Missa (Sessão XXII).

Incluído em: Denzinger, Heinrich. Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações de Fé e Moral. São Paulo: Paulinas.

  1. Joseph Ratzinger / Papa Bento XVI
  • Introdução ao Espírito da Liturgia. São Paulo: Loyola, 2001.

Uma obra essencial para entender a teologia do sacrifício e a centralidade da Eucaristia.

  • Jesus de Nazaré – Da Entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011.

Especialmente o capítulo sobre a Última Ceia.

  1. Hans Urs von Balthasar
  • O Mistério Pascal. São Paulo: Paulinas, 2007.

Uma profunda meditação sobre a entrega de Cristo e a sua atualização na liturgia.

  1. Plínio, o Velho
  • História Natural (Naturalis Historia), Livro X, capítulo 63.

Fonte clássica sobre a lenda do pelicano na Antiguidade. Traduções parciais disponíveis em português.

  1. Referências iconográficas e simbólicas
  • Ferguson, George. Signs & Symbols in Christian Art. Oxford University Press.

Excelente para compreender a evolução dos símbolos como o pelicano no patrimônio artístico da Igreja.